sábado, 23 de outubro de 2010

COMO È POSSIVEL? A HISTÓRIA DO GABRIEL

Á medida que for escrevendo neste blog, vou contar algumas histórias de crianças, jovens e adultos que encontrei por esse mundo fora. Em nenhum caso vou usar o nome verdadeiro, mas acho que a história deve ser contada, nem que seja para que se saiba o que se passa por aí.
Esta primeira é arrepiante, pela veracidade e crueldade da vida de um miudo de treze anos, e garanto-lhes que passou, apesar de parecer digna de um filme.
Ligaram-me da agência 57 do MP da Cidade do México, que era uma das 3 especializadas em assuntos para menores de idade. Como de costume era a Assistente Social Rosário, que me queria pedir para aceitar no lar um miudo de treze anos de nome Gabriel. Que era um assunto muito especial e que me ia enviar a Averiguação Prévia, para eu ter conhecimento do caso e só depois poder tomar a decisão.
Achei estranho porque normalmente a intenção do MP era "vender" rápidamente a história que todos eram crianças maravilhosas, apenas com um pouco de azar.
Mas a Rosário, também me disse que seria um miudo para "perder", ou seja a gíria para uma situação em que o miudo iria ser tansferido de instituição por uma ou duas vezes de modo a protegê-lo e escondê-lo de alguém. Isso significava que se o aceitasse, ele ficaria na "minha" instituição no máximo por um mês, se tanto.
Fiquei realmente curioso, e quando a patrulha me trouxe a averiguação, fiquei parvo com o tamanho e a grossura daquele documento. O que normalmente tinha umas 10/15 paginas, tinha daquela vez umas 60 ou 70.
O Gabriel vivia com os pais e a irmã até á cerca de um ano - da data em que eu lia o documento - quando a mãe e o pai faleceram num acidente de automóvel. As crianças foram então entregues a um tio, que recebeu do tribunal a guarda dos miudos. Os miudos eram realmente giros, louros de olhos claros e sardentos - uma caracteristica que os diferenciava dos mexicanos "normais" que têm um tom de pel mais escura.
Segundo a averiguação do MP, foi nessa altura que o pesadelo começou para o Gabriel. Ao que parece o tio e o seu filho mais velho, pertenciam a um culto, meio estranho de uma mistura de espiritismo/satanismo, nunca percebi bem de que se tratava concretamente. Se era uma tentativa de religião ou só uma maneira de disfarçar as taras dos membros.
Antes do Gabriel ser levado para o primeiro encontro do culto, foi abusado pelo primo para o "preparar". E a partir dessa altura ele passou a ser o centro das taras religiosas desse grupo de gente. O que o Gabriel passou, aos treze anos - e que vou contar aqui - foi vexames sem fim, ser urinado, ser posto na posição de cruz e serem-lhe atiradas fezes, colocarem-lhe imagens da "Santa Morte" em cima do peito (uma coisa que o assustava muito no meio daquela tara toda), e outros abusos que prefiro não descrever, porque até a mim na altura que os estou a relembrar, me deixam algo chocado e perturbado...
Graças a uma vizinha desconfiada e a uma queixa á policia, foi feita a intervenção e os miudos foram imediatamente retirados aos tios.
Depois de ler aquele documento, garanto-lhes que fiquei com frio e a tremer das mãos. Fiquei bastante agitado ou perturbado, não sei bem o termo a utilizar, mas o que é certo é que liguei para a Rosario da Agencia 57 para dizer que aceitava o miudo. Que o trouxesse. Lembro-me de ela me dizer qualquer coisa como "Não estás bem pois não? Eu tambem fiquei assim, até chorei quando estava a ouvir os depoimentos".
Algum tempo depois o transporte do MP chegou e a Rosário e o Gabriel entraram para o meu gabinete. Lembro-me claramente do miudo. Vinha com um fato de treino amarelo, tinha o cabelo curto e encaracolado, a cara cheia de sardas e os olhos constantemente no chão. Tratámos das formalidades e levei-o para o quarto, demos-lhe roupa nova para vestir depois do banho e um lanche. Durante todo este tempo o miudo obedecia a tudo com um aspecto parecido a um zombie e a unica vez que teve uma reacção espontânea foi quando a minha cadela labrador Romy se aproximou. Aí ele fez-lhe festas, agachou-se pos-lhe o braço por cima e foi bem lambido pela Romy.
O Gabriel ficou conosco um pouco mais de um mês. Obedecia cegamente ao que se lhe dizia, encolhia-se quando o abraçavamos, e nunca, nunca se ria ou sorria. Não se misturava com os outros miudos e a unica verdadeira amiga que tinha e com quem passava horas abraçado era a cadela, sem realmente brincar ou ter interacção, muitas vezes encontrava-o a ver desenhos animados com a Romy a servir de almofada.
Foi então transferido para uma instituição no interior do estado de Puebla, e acabei por não saber mais dele. Passou pela casa como muitos outros, mas vou lembrar-me sempre da expressão sem emoção e do olhar vazio daquele miudo de apenas 13 anos que foi vitima da maldade absoluta.
Não pensem, ao ler isto, que o Codinha variou e agora escreve dramas. A verdade é que este miudo foi um caso real, e que o incrivel é que isto passa por aí com mais crianças.
Quem quiser investigue: Vão ao Google e procurem Santa Muerte. Há tambem uns livros interessantes chamados Edge of evil e Satanic Panic que embora com visões diferentes nos dão algum insight sobre este tipo de crenças aberrantes.
Oxalá o Gabriel esteja bem.

1 comentário:

  1. é impressionante esta sua história, só contada entre-linhas, quanto mais vêr, reler, visualizar na hora esse doc., agora uma pergunta se me fez de imediato! se não sabe o que é feito dessa criança, como viverá? qual será a sua felicidade? Porque se deu-se tão bem na sua instituição, e a unica companhia e amiga era a sua Romy, sem ela, deveria ser dificil e angustioso !

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