quinta-feira, 18 de novembro de 2010

ABRAÇOS MALCHEIROSOS MAS SINCEROS

Um dos miudos que lembro com mais carinho chamava-se Pitufo, ou pelo menos era assim que o chamavam. O nome verdadeiro, nunca o soube, mas a alcunha nada tinha a ver com ele. Pitufos no México eram os Estrunfes, uns bonecos azuis que viviam numa aldeia com cogumelos como casas.

O nosso Pitufo era castanho, magro e alto. Castanho da sujidade e magro da fome, mas era um tipo impecável. Ele vivia  com o primeiro grupo com quem trabalhei na rua na Cidade do México, na zona de Indios Verdes, e não sei bem porquê lá simpatizou comigo e ficámos grandes amigos.

Chamava-me Pariente, que literalmente significa "Familia" e tinha o hábito de vir ter comigo dar-me um grande abraço cada vez que eu chegava ao pé deles. É dificil de explicar o fedor que aquele miudo tinha. Muitos dias sem banho, a viver nas caixas de esgoto, a fumar erva e a inalar diluente. Não há descrição possivel.... mas lá vinha ele, com um grande sorriso a gritar pariente, a abraçar-me e a perpetuar o braço sobre os meus ombros, o que acentuava o sofrimento do meu sentido olfactivo.

Muitas vezes fiquei a ouvi-lo contar os problemas que tinha com a Brenda, a sua namorada de longa data, que por acaso era feia como só ela. Os seus dentes pareciam o resultado de um choque de comboios, mas de algum modo eles amavam-se perdidamente e tinham uma relação quase matrimonial.

O mais fantástico acerca do Pitufo é que nunca me pediu nada. Nunca me pediu dinheiro, comida ou qualquer outra coisa material. Era um miudo simples, sem preconceitos e bastante afectuoso. 

Um dia perguntei-lhe qual era o sonho dele. Ele disse-me muito simplesmente que era poder entrar no restaurante em frente á boca de esgoto onde ele dormia, sentar-se e comer....

Um sonho simples de um miudo simples.

Quando comecei a dirigir a instituição estive algum tempo sem ir a Indios Verdes e quando voltei soube que a policia tinha feito uma batida na zona e os miudos tinham fugido dali. Nunca mais soube nada do Pitufo nem da Brenda, mas ele é uma daquelas pessoas que sinto muitas saudades, pelo seu carinho e pela sinceridade daquela amizade.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

NATAL ESPECIAL

Alguns dias após os acontecimentos do meu ultimo post, mais precisamente no dia 23 de Dezembro de 1994, recebi um telefonema da Agencia 57 do Ministério Publico, especializada em menores. 

Como de costume era a voz da Rosario, a assistente social, que me disse "Hola Carlitos, como te va?".... pronto ai vinha coisa, era um pedido de certeza. Mas desta vez nem pensar, tinha só 14 camas, 14 pratos, 14 copos, enfim... 14 de tudo, graças á caridade natalicia da Sra. Maria.

"Quiero que me ayudes con unos ninõs..... eles foram descobertos numa casa de um homem que os recolhia e os mandava mendigar" (Um estilo de Fagin do Oliver Twist) 

A historia destes miudos não era incomum. 3 deles tinham fugido de casa para ir experimentar as emoções da capital. Vinham do estado de Michoacan e francamente não tinham nada de meninos de rua. Os outros quatro eram miudos que tinham saido de casa, provavelmente por maltrato ou falta de condições e que pensavam encontrar na casa do tal homem um lar mais aceitável.

A policia soube da situação, fez um raide e retirou as crianças dessa casa. Até que os conseguissem mandar de volta para as suas familias ou encontrar uma solução mais permanente, teriam que realizar os trâmites legais necessários. Isso levava tempo e o Natal estava á porta....

Ora a Rosário já tinha tentado enviar os miudos para varias instituições, mas estas estavam cheias, sem espaço, etc etc etc. O costume! Por isso e em ultima hipotese estava a ligar á unica casa que nunca recusava ninguém. Mas agora era verdadeiramente impossivel, eu simplesmente não tinha condições.  Ela alegou todos os motivos possiveis e imaginários, e eu todas as desculpas possiveis e imaginárias, até que fiz finca pé e disse que não tinha camas, lençois nem cobertores.

A filha da mãe da Rosário não desarmou. Disse com uma lata de primeira: "Já falei com o estabelecimento prisional e eles dispensam 7 catres, 7 lençois e 14 cobertores. Quando te levar os miudos, levo-te o material" e claro fechou com chave de ouro "As crianças não vão passar o Natal numa agência de policia? Pois não?"

Os miudos chegaram ao fim da tarde, juntamente com uns guardas prisionais que traziam numa carrinha os catres, os lençois e os cobertores que diziam em letras vermelhas "Reclusorio Sur". Nessa noite tivemos que jantar em dois grupos,  porque entre cada um tivemos que lavar pratos, copos e talheres. Só tinhamos material para 14 e não para 21. Esse era o nosso numero.... 21. Tinhamos crescido 50% em poucas horas.

Na manhã seguinte, muito cedo, andava eu pela casa a ver os miudos a dormir na sala, no meu escritório e até na capelinha e a fazer contas á vida, do que teria de fazer para a ceia de Natal esticar para mais 7 putos, que como seria de esperar comem que nem alarvos. Mas lembro-me de esta ser uma imagem reconfortante, vê-los a dormir tranquilamente. Eles verdadeiramente sentiam-se seguros.

Por volta das 8h30/9h00 a campainha tocou, e eu fui á porta ver quem estava a tocar tão cedo no dia 24 de Dezembro. Era uma senhora cuja cara nem me lembro. Perguntou-me se ali era o Lar de Crianças, ao que respondi que sim. Ela disse-me que trazia algumas coisas para nós e se podia descarregar. Expliquei que os miudos estavam ainda a dormir, mas que eu levaria as coisas para dentro.

Ela abriu  o porta bagagens e começou a tirar (do que me lembro) três perus, caixas de doces, batata doce, duas caixas de louça de porcelana, coca-colas, bolos de frutas e uma enorme quantidade de brinquedos e roupa. Tudo novinho em folha. Dito isto agradeceu a oportunidade de poder ajudar e foi-se embora. Eu não queria acreditar! Eu nem tinha tido tempo de pedir nada a ninguém. E de repente ali estava tudo o que precisávamos e ainda mais.

Não me quero alongar. Mas nessa noite a ceia de Natal foi recheada de tudo o que era bom, comeram que nem alarvos, estrearam roupa, tiveram brinquedos novos e muito importante, estivemos todos juntos na mesa a comer em pratos de porcelana.

Até hoje só tenho pena de nunca ter perguntado o nome da senhora, nem a ter convidado a visitar a casa. Pois nunca mais a vi nem soube nada dela, quem era nem de onde tinha vindo. Mas de certeza que sei quem a mandou...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

FALSA CARIDADE

Á pouco uma conversa que tive no Facebook, fez-me lembrar de algumas situações que relaciono com o titulo deste post.


Em 1997, na Cidade do México, eu juntamente com alguns empresários e pessoas dedicadas, abrimos a Casa San Francisco, que recolhia naquela altura 14 miudos entre os 8 e os 16 anos. Todos os que puderam colaborar, ajudaram com doações de todo o tipo, pois ao fim e ao cabo uma casa nova precisa de tudo.

Após a abertura com toda a pompa, e passada a euforia das inaugurações, não tardaram os primeiros problemas.
No grupo de doadores e voluntarios, estava uma senhora, filha do fundador de um grupo económico gigantesco, e que é actualmente lider na sua área em practicamente todo o continente americano. Essa senhora tinha na altura 60 e poucos anos e descendente de uma familia espanhola conservadora tinha ideias muito próprias do que seria uma instituição.

Pessoalmente, sempre achei que já era dificil para um jovem estar num lar e longe de uma familia real, pelo que sempre quis que a instituição não tivesse placas na porta ou que a carrinha não tivesse logotipo, por exemplo. No entanto um dos primeiros grandes desacordos foi o facto da tal senhora (vamos chama-la de Maria), ter comprado para todos as crianças e jovens uns fatos de treino com o nome da instituição estampado nas costas e o logotipo no peito. E a intenção de os levar ao supermercado ás compras assim vestidos, ainda mais perto da residência da D. Maria, pareceu-me uma coisa completamente absurda por estar a expor e a tornar-los ainda mais diferentes do que, infelizmente, já eram.



A partir dai as coisas foram piorando. Não aceitei uniformes, não aceitei linhas desenhadas no chão para marcar o sitio por onde podiam andar, não aceitei horas de silêncio absoluto. Enfim, não é dificil perceber que a ruptura deu-se e a D. Maria acabou por ameaçar deixar de ser parte da instituição, e que nem colocaria mais dinheiro na casa se não se fizesse o que ela queria. Como sempre fui muito mau para aceitar ultimatos, e não estava sozinho nesta maneira de pensar, a negociação acabou e a senhora eventualmente deixou de apoiar a obra.

Ainda assim, isso não foi o mais dramático. Alguns dias depois fomos visitados por uma prima da dita senhora que nos disse que era intenção da D. Maria, recolher todo e qualquer objecto que ela tivesse comprado ou doado. É verdade!! E foi assim que mais tarde, no dia 14 de Dezembro de 1997, em vesperas de Natal, que a muito caridosa e religiosa senhora recolheu tudo o que tinha doado, segundo uma lista que cuidadosamente tinha preparado.

Levou camas, colchões, mantas, pratos, copos, lâmpadas, fatos de treino, até as panelas da cozinha foram. Penso que pouco se preocupou onde as crianças iam dormir, comer ou com que se iam tapar. O importante era que o seu orgulho e a sua vontade tinham de vencer.

O mais bonito foi que os seus empregados recolheram as coisas no pátio, porque dentro da casa tudo já tinha sido substituido. É que quando se soube o que a senhora se preparava para fazer, uma onda de solidariedade de muitas pessoas fez-nos chegar até áquela casa, camas novas, mantas novas, fogão novo, frigorifico novo e muitas outras coisas que no inicio nem tinhamos.

Quanto á senhora deverá ter ficado feliz com a sua vingança e deve ter passado mais algum tempo na igreja a pensar-se santa, pura e casta. Já nós passamos um Natal muito especial, que amanhã vos contarei...
Mas sim. Falar é fácil! Agora ser honesto é um pouco mais dificil...